terça-feira, setembro 30, 2008

CAMILO CELA, KUROSAWA, ALICE GUY-BLACHÉ, VALUNA, TEATRO & LITERATURA DE CORDEL


Antes de começar esta história anedótica sobre a minha vida como diretora de cinema, permita-me apresentar a você aquele que preencheu minha vida completamente... Meu próprio Príncipe Encantado. O cinema.
A arte da cineasta e roteirista pioneira do cinema francês Alice Guy-Blaché (1873-1968), que dirigiu mais de mil filmes durante os seus vinte anos de carreira, administrando seu próprio estúdio.

VALUNA: A CIDADE É ELA, O VERDADEIRO RISO DE MULHER - (Imagem: art by Dmitry Spiros) - Ali eu era um dourado. Hem? Deixa de pacutia! Era mesmo. Ali, se muito, um acari. Nada, duvide não. Ah, tá. Acredita? Não. Pois, tá. Saí dali com lêmures que passeavam ao vento. Uma cidade era esta: a morada abissal nos quilombos da noite Zumbi, uivo de coruja de todos os presságios, alalaôs de todas as festas, orações de todos os templos, correio de todas as notícias, arena de todas as lutas vencidas, perdidas, mau-choradas. Ali o terreno surpreso de todas ignóbeis sentenças de vida que se descoravam e se coloriam em cada anátema dos deuses. Eu guardava em meu cofre de nada todos os impérios de fome e luxúria dali. Guardava a desprezível ingratidão contemplada nos tapetes de pelúcia que completavam a ruína rodeada de penúria. Ali festejavam andores que fabricavam as incontestáveis beatitudes aureoladas nas noites insones que deixavam morrer do mais simples ao mais graúdo e ressurgiam em cada copo mau-tomado, como sudário de manifestação escabrosa. Uma cidade era esta, dos deuses do barro suspensos nos tronos inflamáveis, de lazarentos apodrecidos nos porões da riqueza roubada que cantavam cantigas do tempo do ronca sob um sol escasso e débil. E eram arcabuzes, mosquetões e pistolas ressoando seus estrépitos como saudando a vida disfarçada de morte, o plantão do inverno nos ventres tristalegres e boquifamintos que inventariavam espólios de vivos que se davam por mortos no mais completo bestiário canhestra de todas as vidas. Há quem dissesse que ali tudo ressecou antes mesmo de nascer, enquanto a doideira dava de caminhar pelas orlas estelares em formas diversas que nem se eram nada, só sequelas de vida que não mais retalhavam dramas porque são eram ditas como doces quimeras impetradas ao sigilo do crepúsculo. Tirânicas eram as ousadias engastadas ao sibilo das chuvas desmoronando sangue – a comiseração por todas bestificadas ruindades indiferentes que redundavam a mais completa insolência de justiça. Uma cidade era esta, porões jamais revolvidos, sujeiras enterradas à força, apodreciam e as mais inexoráveis das balanças eram adulteradas, vendidas. Eu dormia ao relento com os cobertores da noite, súdito esconjurado, sem pedras para jogar do coração em quem e o que quer que seja: um filho sem seio na ânsia de amamentar. Eu era todos os brejos e imundícies, sofria a agonia de todos, mesmo sabendo que ela não era minha. Eu era todas as praças dali, ruas, becos e memórias, sentia os desvarios e todas as relíquias de bondade. Eu deitava na noite e sonhava com a cidade que era ela e ouvia a voz da indignada sob as olheiras, o bafo da cachaça, o fumo, o pouco sol, o desespero na carne e o desassossego no sono que me fugia na madrugada insidiosa ou no crepúsculo suicida. Era a Rua do Rio onde eu estava, fiapo de valeta que sequer demostrava ter sido o caudal destemido cidade adentro, desalojando bispo, desarmando delegado, destronando juiz, despejando prefeito e descabelando a população que ficava três dias encarreados ou mais, atrepando o povo no morro central, onde antigamente era o baixo meretrício, limítrofe do cemitério local. Era o maior aguaceiro de não deixar vivalma com coragem de enfrentar a correnteza do alagamento, vixe! Quase dois metros de inundação. Bote fé. U-hu! Foi aí onde eu me batizei e quase morri afogado: o meu batismo de fogo pelas lutas de Zumbi, a Guerra da Praeira, das ligas camponesas, das intrigas triviais, das bravatas estrepitosas, dos fuxicos cabeludos e de muita ignomínia tola. Dela me lembro, sangue na boca, mãos pro alto e cabeça a mil. Foi lá que dei de cara com muita doidera, esquisitice e renhenhém. Foi Carma quem me deu o primeiro abraço na vida. E com um riso lindo. Minha mãe, coitada, vítima da minha buliçosa gestação, perdia a conta da gravidez: sete ou dez meses? Quase endoida, avalie. Desentalei na horagá do rebento de um jeito tão desajeitado, da prestimosa parteira toda se atrapalhar. Escapuli dali às pressas para tocar fogo no mundo e aprontar, quase me arrebentando no chão. Foi aí que Carma, providencialmente, me abraçou brincando: o sorriso dela me acompanhou desde então, porque amuleto que me fez sempre um sujeito, de sorte. Ah, dona Zezé! A paciência daquela que me pariu – Deus a tenha ainda sonhando comigo um médico respeitado -, quase finda num enlouquecimento avultado com as minhas presepadas de garoto. – Esse vai ser o meu doutor, o médico que vai curar todo mundo! -, era ela, coitada, depositando em mim, todas as fantasias de ver-me formado em Medicina. Não sabia da primeira aplicação de vacina e eu desmaiaria. Que dali em diante, jamais eu poderia ver nem seringa nem potoca de sangue que logo desmontava estatelado no chão. Mas ela não arredava, cuidou de mim todo tempo. E eu um malcriado, só queria aconchego com Carma reclamando aos prantos: - Carma, maínha não deixa! Maínha não deixa! Acometido por zis enfermidades, maluvido que aproveitava cada mínima piscada de olho dela, com desobediência às prescrições médicas desde que fora vítima de um derrame nos olhos ainda no primeiro ano de vida, constantemente me empanzinava com iguarias condenáveis pelo fígado baqueado pelos antibióticos, a cometer todas as arteirices, até cair do teto da casa numa pia repleta de cascos de garrafas, com presepadas de virar armários quebrando todos os utensílios, pisoteios muitos que me levaram a ser tratado como os pés-da-doida por todas da vizinhança. Desfazia das ordens e na hora das lapadas corria para os braços de Carma que me alentava como ente endeuzado. Ah, Carma, sempre no meu coração. Daí dizer: nasci entre um rio e um riso de mulher. Nasci no seu sorriso: um rio que se fizera mares, oceanos e tudo de infinito. Ela que sempre foi em mim Araci e me ensinou o dia de todas as horas e acontecências; que foi Coaraci e me deu o brilho do Sol de todas as luzes e cores; que foi Tatá-manha para que eu soubesse do fogo, queimares e brilhos; que foi Dandalunda, Iemanjá, a mãe Dandá e Cotaluna, para que eu soubesse das águas nas cuias das mãos de todas as sedes e procederes; que foi Caamanha para que eu soubesse do mato e todos os poderes; que foi Jaci e me ensinou da Lua os frutos de todos os sabores da boca e pomares - e o juazeiro que não perdia jamais as folhas na secava nem no inverno; que foi Murucututu com todas as cantigas de ninar no céu estrelado e escuridão; que foi Sacu-manha para me aquecer de todos os frios nas geleiras do abandono; que foi Iá-Quererê e me levou para ver o arco-íris beber das águas do rio: carangueijo ao atá quer brincar! Eu era menino, sempre fui e até hoje. E ela ria para me ensinar Caapepena e todas as lições do fio de Cloto, do fuso de Laquesis e do nó de Átropos: tudo para que eu visse a princesa deitada no casco do guajá e me protegesse de mandingas e de tantos quebrantos, do calor extremo – ela dava três assobios longos e logo ventava forte: ora, era só deixar os patos passarem. E eu ria ou chorava. E mais ríamos com as minhas atrapalhadas. Assim me dizia e eu ria, crescendo, maturando. Foi ela ainda eu tabaréu que me fez curado de cobra com ensalmos que curam de amor e com todas as manobras e trajetos; e me disse para não mais olhar para trás e encarar as pelejas, a distinguir o que era coisa feita e o canzuá de quimbe, dos que não se viram no espelho e logo morreram de pecado mortal: do tanto que foi o pote à fonte e um dia se quebrou - quem não pode com ele não pega na rodilha. Aconselhava e sorria, quase nem levava a sério, mas levava e eu nem sabia. Foi dela que soube de Luzia que arrancou os olhos e os deu ao amor, e Obá a orelha para agradar seu senhor. Ela alisava meus cabelos aos cafunés e me dizia para que eu não vacilasse de olho aberto para as hamadríadas nos carvalhos, o lúgubre agouro do Jucurutu, o não-sei-que-diga escondido e os que mijavam nas covas, enquanto se viam nas quadras de punição; de Priprioca e a casa de Piripiri, o tajá e o tamacoare, valia dela a dendrofilia: o respeito eterno pela Natureza & todas as coisas. É dela o que foi e ainda está em mim, o melhor de tudo, o que era panaceia e o que era espinha de bagre, das riquezas do lago encantado do Grongonzo, dos dias de Logunedé, das jornadas por promessas com quadras decoradas a desatar o que deu nó com dois dedinhos de prosa nas ligeiras: paca, mondé, sururu, porco-do-mato e tatu. Ou dedo-mindinho, seu vizinho... cadê o bolinho daqui? Eu ria. O rato comeu: lá vai o gato atrás do rato e a futucada no sovaco. Esse menino tem cotoco, não para quieto! Eu contava, somava e dividia; e ela sorria com instruções para as redondilhas e o Lunário Perpétuo, até a liberdade do verso livre: ao melhor poeta um coco, ao melhor vate um papão, tudo para que me tornasse canoeiro patenteado, livre de efifás das que não mostram os panos, enfim, para que eu encontrasse a dama-de-branco e ficasse rico e amado. Não fui, acho que não. Não sei, nem saberia. Ela sabia tudo. Sempre tive mais que o merecido. Dela, a graça divina e o que aprendi. Fiz uma canção para ela e foi pouco. Um poema e mais. Nada me satisfez nem poderia, porque ela era Carma, a Ci, a mãe de todas as mães com as manhecências do seu sorriso que ficou em mim para sempre. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.


DITOS & DESDITOS - A solidão é o mais alto prêmio que ninguém pode receber. Pensamento do escritor e jornalista espanhol vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, Camilo José Cela (1916-2002). Veja mais aqui.

ALGUÉM FALOU: Meus filmes emergem de meu próprio desejo de dizer algo em particular, numa época particular. A raiz de qualquer projeto cinematográfico situa-se, para mim, nesse desejo interior de expressar algo. O que nutre essa raiz e a faz prolongar-se em uma árvore é o roteiro. O que faz a árvore produzir flores e frutos é a direção. Trecho extraído da obra Relato autobiográfico (Estação Liberdade, 1990), do cineasta japonês Akira Kurosawa (1910-1998). Veja mais aqui.

TEATRO – [...] As grandes disputas em que se envolvem e que definem atitudes arquetípicas da humanidade não têm, por si só, nada de original, nada que apresente elementos novos. O que lhes dá realce inédito é o ambiente fervilhante, tenso e histérico em que se travam, a atmosfera ameaçadora, dionisíaca,  orgiástica, que lhes acrescenta novas dimensões de fúria sensual e um impacto muito além da mera formulação de teses, por mais revigorosa e dramática que seja [...]. Trecho extraído da obra Teatro moderno (Perspectiva, 1997), do crítico e teórico de teatro germano-brasileiro Anatol Rosenfeld (1912-1973). Veja mais aqui.

A GÍRIA – [...] podemos observar que a gíria é consequência da segmentação da sociedade. Seu intercurso social é um fator essencial, ela funciona como uma reação linguística ao condicionamento e ao anonimato social. Surge de uma língua natural que se transforma devido a um grupo e procura cumpriram papel na sociedade [...].
Trecho extraído da dissertação de mestrado em estudos da linguagem, As criações metafóricas na gíria do Sistema Penitenciário do Paraná (UEL, 2003), da professora e pesquisadora Maria de Lourdes Rossi Remenche.


A PELEJA DE BERNARDO NOGUEIRA COM PRETO LIMÃO

João Martins de Athayde

Em Natal já teve um negro
Chamado Preto Limão
Representador de talento
Poeta de profissão
Em toda parte cantava
Chamando o povo atenção

Esse tal Preto Limão
Era um negro inteligente
Em toda parte que chega
Já dizia abertamente
Que nunca achou cantador
Que lhe desse no repente

Nogueira sabendo disto
Prestava pouca atenção
Dizendo: - eu nunca pensei
Brigar com Preto Limão
Sendo assim da raça dele
Eu não deixo nem pagão

O encontro destes homens
Causou admiração
Que abalou o povo em roda
Daquela povoação
Pra ver Bernardo Nogueira
Brigar com Preto Limão

Eu sou Bernardo Nogueira
Santificado batismo
Força de água corrente
Do tempo do Sacrantíssimo
Quando eu queimo as alpercatas
Pareço um magnetismo

Me chamam Preto Limão
Sou turuna no reconco
Quebro jucá pelo meio
Baraúna pelo tronco
Cantador como Nogueira
Tudo obedece meu ronco

Seu ronco não obedeço
Você pra mim não falou
Até o diabo tem pena
Das lapadas qu’eu lhe dou
Depois não saia dizendo:
- Santo Antônio me enganou!

Bernardo eu não me enganei
Agora é que eu pinto a manta
Cantor pra cantar comigo
Teme, gagueja, se espanta
Dou murro em braúna velha
Que o entrecasco alevanta!

Você pra cantar comigo
Precisa fazer estudo
Pisar no chão devagar
Fazer o passo mi;udo
Dormir tarde, acordar cedo
Dar definição de tudo…

Você pra cantar comigo
Tem de cumprir um degredo
Pisar no chão devagar
Bem na pontinha do dedo
Dar definição de tudo
Dormir tarde, acordar cedo…

Cantor que canta comigo
Estira como borracha
O suor do corpo mina
Os olhos salta da caixa
Quer tomar pé mas não pode
Procura o fôlego e não acha…

Nogueira, estás enganado
Queira Deus você não rode
Teimar com Preto Limão
Você quer porém não pode
Se cair nas minhas unhas
Hoje aqui nem Deus acode!

Moleque, se eu te pegar
Me escancho em tuas garupas
Das pernas eu faço gaita
Da cabeça uma combuca
Dos queixos um par de tamanco
Da barriga chupa-chupa

Nogueira se eu te pegar
Até o diabo tem dó!
Desço de goela abaixo
Em cada tripa dou nó
Subo de baixo pra cima
E vou morrer no gogó

Da forma qu’eu te deixar
Não vale a pena viver
Porque teus próprios amigos
Não hão de te conhecer
Corto-te os beiços de cima
Faço te rir sem querer!

Você vai ficar pior
Send’eu já estava chorando
Porque de ora em diante
Hás de falar bodejando
Corto-te a ponta da língua
Fica o tronco balançando

O resto de tua vida
Terás muito o que contar
Dês de perto, abertamente
Se acaso desta escapar
Diga que foste ao inferno
Depois tornaste a voltar

Tive uma pega com Inácio
Moleque bom na madeira
É negro que não se afronta
Com dez léguas de carreira
Dum açoite que dei nele
Quase larga a cantingueira

Você cantou com Inácio
Porém só foi uma vez
E faz vergonha contar
O que foi qu’ele te fez
Te pôs doente um ano
Aleijado mais dum mês

Inácio não me fez nada
Porque vivia cismado
Duma surra qu’eu dei nele
Há vinte do mês passado
De preto ficou cinzento
Quase morre asfixiado

Moleque tu me conhece
Como cantor afamado
No lugar qu’eu ponho a boca
É triste teu resultado
Tive uma pega com Inácio -
Já vi serviço pesado!

É porque você não viu
Preto Limão enfezado
Acendia os horizontes
De um para o outro lado
Rasga as decondências dele
De um negro encondensado

Tive aperriado um dia
Fiz a terra dar um tombo
No recreio da parcela
O mar é surdo urubombo
Cobri o mundo de fogo
E nada me fez assombro

Você fazendo tudo isso
Dá prova de homem forte
Eu já o considerava
Pela sua infeliz sorte
Se você chegasse a ir
Ao Rio Grande do Norte

Se eu for lá ao Rio Grande
Até voc6e desanima
O sol perderá seus raios
A terra, o mundo e o clima
Tapo a boca do rio
Deixo correndo pra cima!

Se me tapares o rio
Verás como eu sou tirano
Rasgo pela terra a dentro
E vou sair no oceano
Deixo a maré do Brasil
Enchendo uma vez por ano!

Moleque, o que você tem?
Parece um pinto nuelo?
Contaste tanta façanha
Como estás tão amarelo?
Quanto mais você se visse
Seu Nogueira no martelo

Se eu cantar o martelo
Você encontra banzeiro
Qu’eu perco a fé em doente
Quando muda o travesseiro
Afinal siga na frente
Qu’eu irei por derradeiro

O cantor qu’eu pegá-lo no martelo
Pego na goela
O cabra esmorece
A língua desce
Os olhos racha
Salta da caixa
Por despedida
Procura a vida
Porém não acha

Tenho chunbo e bala
Para seu Nogueira
Cantador goteira
Pra mim não fala
Dentro duma sala
Fica entupido
E amortecido
E sem recurso
Até o pulso
Lhe tem fugido

É na bebedeira
Que o preto morre
Tropeça e corre
Topa ladeira
Mede porteira
E passadiço
E alagadiço
Se for com trama
Se encontrar lama
Topa serviço

Duro de fama
Dura bem pouco
Que o pau que é oco
Não bota rama
Chora na cama
Qu’é lugar quente
Quebro-te dente
Furo-te a língua
Faço-te íngua
Cabra insolente

Vante o perigo
É qu’sou valente
Sou a serpente
Do tempo antigo
Negro comigo
Não tem ação
Boto no chão
Quebro a titela
Arranco a moela
Levo na mão

Nogueira, tu reparaste
Num sujeito que chegou?
Trouxe um recado urgente
Que minha mulher mandou
Por hoje eu não canto mais
Fique cantando qu’eu vou…

Não quero articulação
Vá se embora seu caminho
Canário que estala muito
Costuma borrar o ninho
Quem gosta de surrar negro
Não pode cantar sozinho

Naquele mesmo momento
Saiu o Preto Limão
Deixou o povo na sala
Tudo em uma confusão
Uns diziam que correu
Outros diziam que não

Quando o Preto voltou
Nogueira tinha saído
Preto Limão disse ao povo:
- Vão chamar o atrevido
Venham olhar bem de perto
Como se açoita um bandido

Foram chamar o Nogueira
Estando ele descansado
Deitado na sua rede
Quando chegou-lhe o recado
Nogueira com muito gosto
Foi acudir ao chamado

Quando Nogueira chegou
Encontrou Preto Limão
Acuado numa sala
Ringia que só leão
Naquele mesmo momento
Começaram a descrição

Cantador qu’eu pegá-lo de revez
Com o talento qu’eu tenho no meu braço
Dou-lhe tanto que deixo num bagaço
Só de murro, tabefe e pontapés
Só de surras eu dou-lhe mais de dez
E o povo não ouve um só grito
Faz careta e se vale do Maldito
Miserável, tua culpa te condena
Mas quem é que no mundo terá pena
Deste monstro que morre tão aflito?

Cantador com Nogueira não peleja
Sendo assim como o tal Preto Limão
Só se for pra tomar minhas lição
Ele engole calado e não bodeja
Vai comendo da mesa o que sobeja
Precisa me tratar com muito agrado
No instante fazer o meu mandado
É de pressa, é ligeiro, é sem demora
Qu’eu não gosto de moleque que se escora
Pois assim é qu’eu o quero por criado

Vale a pena não seres cantador
É melhor trabalhares alugado
Vai cumprir por aí teu negro fado
Vai viver sob o ferro dum feitor
Da senzala já és um morador
Teu trabalho é lá na bagaceira
O que ganhas não dá pra tua feira
Renego tua sorte tão mesquinha
Que te assujeitas às amas da cozinha
E te ofereces pra delas ser chaleira

Este homem já vive desvalido
É descrente de Deus e da Igreja
Lucifer o teu nome já festeja
Tu só podes viver é sucumbido
Sois tão ruim que só andas escondido
Para Deus nunca mais serás fiel
Tua raça é descendente de Lusbel
Que do Céu já perdeste a preferência
Farás tua eterna convivência
Lá embaixo dos pés de São Miguel

Tu pareces que vinhas na carreira
Sempre olhando pra frente e para trás
Como quem chega assim veloz de mais
Eu vi bem quatro paus de macaxeira
Uma jaca partida e outra inteira
Também vi dois balaios de algodão
Creio que tu já foste um ladrão
Com o peso fazia andar sereno
Às dez horas da noite, mais ou menos
Encontrei-te com esta arrumação

Meus senhores de dentro do salão
Este enorme convívio de alegria
Exaltar este homem é covardia
Só lhe falta o nome de ladrão
Para o povo tem sido muito exato
Só o que tem é que peru, galinha e pato
No lugar que ele mora não se cria
Muita gente aqui já desconfia
Que ele passa lição a qualquer rato

Quiosque fechado não se vende
Cantador sem rimar é desfeitado
Como tu neste banco te alevantas
Não precisa que o povo me encomende
Quem é cego de nada compreende
Vive numa masmorra anzolado
Por que eu já o tenho protejado
Desta tua incivil sorte mesquinha
Eu te deixo no mato sem caminho
Sob as garras dum gancho pendurado

Cantador capoeira não me agüenta
Inda duro e valente qu’ele seja
Com Bernardo Nogueiras não peleja
Adoece, entisica e se arrebenta
Dou na testa, dou na boca, dou na venta
Desta pisa ele fica amortecido
Endoidece, fica vário do sentido
Eu o boto na roda e no manejo
Ficará satisfeito meu desejo
Pra não seres cantador intrometido

Te arrepende da hora que nasceste
Seu Nogueira como é tão infeliz
Tua vida no mundo contradiz
Contra mim pelejando não venceste
Na prisãp de masmorra já sofreste
Tua vida já perde as esperança
Eu armei uma forca e uma balança
Num minuto hás de ser bem degolado
Ficará todo mundo consolado
Preto Limão só assim terá vingança!

Eu já tenho um moinho de quebrar osso
Uma prensa inguileza preparada
Qu’inda ontem emprensei um camarada
Qu’era duro, valente e muito moço
Eu já tenho guardado o teu almoço
Qu’é um bolo de ovos com manteiga
Pra cantor malcriado que lá chega
Eu agarro na gola desse cuba
Piso a carne diluída e faço puba
Se eu não matar levo ele para a pega

Quando eu apareço numa casa
Que me mandam então eu divirtir
Quatro, cinco dias vê cair
Relâmpago, trovão, curisco e brasa
Cantador comigo não se atrasa
E quem for valente, já morreu
A tocha de fogo já desceu
Meu martelo é de ferro e aço puro
Cantador comigo está seguro
Nunca houve um martelo como o meu…

Você diz que no martelo é atrevido
E somente porque não considera
Você nas minhas unhas desespera
Fica louco e quase sem sentido
Numa hora ficarás doido varrido
Teu repente não passa de besteira
As peiadas que eu te dou levanta poeira
Todo o povo já lhe tem é compaixão
Eu te deixo embolando pelo chão
Como porco que bebe manipueira

Dou-te sufregada
Dou-te tapa-queixo
Com pouco te deixo
Com a boca lascada
A língua puxada
Três palmo de fora
Casco-te as esporas
P’rós teus suvaco
Faço raco-raco
Danado, tu chora!

Dou-te bofetão
No pé do cangote
Eu vou no pacote
Do Preto Limão
Eu boto no chão
E piso a barriga
Espirra a lombriga
Os pinto comendo
O povo dizendo:
- Agüenta a espiga…

JOÃO MARTINS DE ATHAYDE – o poeta e editor paraibano João Martins de Athayde (1880-1959), foi um renomado autor, editor e detentor dos maiores clássicos da literatura de cordel, havendo uma pendenga entre a autoria de suas obras com as de Leandro Gomes de Barros.

FONTES:
ATHAYDE, João Martins de. João Martins de Athayde: introdução e seleção de Mário
Souto Maior. São Paulo: Hedra, 2000.
______. O trovador do Nordeste: introdução e notas de Waldemar Valente. Recife: s.e., s.d.
BENJAMIM, Roberto. João Martins de Athayde. Casa de Rui Barbosa. s/e, s/d.
_____. Folkcomunicação na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Comissão Gaúcha de Folclore, 2004.
TERRA, Ruth Brito Lemos. Memória de lutas: a literatura de folhetos do Nordeste (1893-1930). São Paulo: Global, 1983.
______. O lugar do poeta/editor João Martins de Athayde. Recife: Fundação Joaquim
Nabuco – Centro de Estudos Folclóricos, 1986.
VALENTE, Waldemar. João Martins de Athayde: um depoimento. Recife, Revista
pernambucana de Folclore, mai.-ago. 1976.
VILA NOVA, Sebastião. João Martins de Athayde: artista popular e enpresário urbano.
Recife: Fundação Joaquim Nabuco – Centro de Estudos Folclóricos, 1985.

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